domingo, 27 de fevereiro de 2011

A posse



Não são muito diferentes hoje do que eram quando nasceram em tempos romanos. Códices na altura, hoje livros, são objectos únicos, amontoados de papel unidos por uma capa, pintalgados de tinta em forma de letras, palavras, frases, histórias, emoções.

Quando são novos, pegamos neles, deixamos as folhas cair umas nas outras para o cheiro nos chegar melhor ao nariz e começamos a lê-los o quanto antes. Na cama, no sofá, no autocarro, no jardim, na praia. Usamos marcadores ou cantos dobrados quando temos de interrompê-los. Muitas vezes assinamo-los para que se saiba que são nossos, por vezes anotamo-los e sublinhamo-los, a lápis, a caneta. Quando gostamos muito, abrandamos a leitura nas derradeiras páginas para saborear mais um pouco. Raros são aqueles que lemos mais do que uma vez. Mas guardamo-los ainda assim. Gostamos de os ver arrumados na estante, gostamos da mancha de cor que desenham, dos altos e baixos dos diferentes formatos. Há séculos que o fazemos. Estão na prateleira, na mesa, no chão. Mas não nos livramos deles.

[excepto quando os oferecemos a quem gostamos, ou quando ardem por despóticas ordens]

O cheiro vai mudando, as folhas amarelecendo. Há quem os goste de arrumar ordenados, alfabeticamente, tematicamente em salas a eles dedicadas que decidimos chamar bibliotecas. Há quem os tenha espalhados pela casa, na sala, no quarto, na cozinha, até na casa de banho.

[sim, muitos aí os lêem]

Por vezes pegamos num especial de que já não nos lembrávamos e sacamo-lo da prateleira. Os outros descaem.

[há quem use cabeças de cavalos para eles não descaírem]

Nessa altura folheamos e lembramos o que lemos anos antes. Lembramos onde estávamos quando o lemos, o que sentimos ali. Numa ou noutra vez há grãos de areia esquecidos que caem de entre as páginas e nos levam àquela praia em que ele foi nosso companheiro, embrulhado na toalha de manhã e ao fim do dia, salpicado de água salgada quando a história não esperava que secássemos.

Não são pessoas, não são animais, são objectos. De estimação.

Limpamos-lhes o pó.

Chegámos ao tempo em que podemos lê-los num ecrã de um qualquer computador. Poucos o fazem. Mentes eruditas escrevem tratados temendo pelo seu futuro.

Quem os escreve pode usar o papel e a caneta, pode usar a máquina de escrever, pode usar o tal do computador.

Quem os edita pode recebê-los por e-mail, pode revê-los com um software, pode promovê-los pela internet.

Quem os lê vai a uma loja a que decidimos chamar livraria, pega num, paga na caixa e sai com um saco de plástico a protegê-lo. Assim que chega a casa ou se senta no banco do carro, comboio, metro, autocarro, saca-o do saco e passa a mão a sentir a capa. Saliva com a curiosidade de tudo o que aquele amontoado de papel pintalgado trará. Tenho mais um livro.

3 comentários:

Twinny disse...

Nem mais.

Anabela Borges disse...

Sim, a Alfarroba sabe o verdadeiro valor do livro e a verdaeira acepção da palavra leitura. Por acaso estou a ler o LIVRO, de José Luís Peixoto, um belo nome para um... livro. Boas leituras para todos.

Elsa Filipe disse...

Passam-se anos e relembro o primeiro "livro grande" que li: "Os três mosqueteiros", de Alexandre Dumas. As seiscentas e tal páginas não me demoveram e, quando acabei, tive vontade de ler mais, de me voltar a sentar junto à janela de livro na mão. Agora passados vários anos, o tempo é menos, as férias já não duram 3 meses... saudades... mas continuo a ler. Sempre que posso e por gosto. Adoro desfolhar um livro novo, absorver cada palavra, cada linha, cada página... até me embrenhar na história.