terça-feira, 10 de abril de 2012

Crítica Literária - Os Livros Nossos



“Demência”, um romance da jovem autora Célia Correia Loureiro, traça-nos um retrato nítido, realista e dramático de uma certa mentalidade tão Portuguesa, ainda presa a estereótipos paternalistas e maniqueístas, presente em tantas aldeias por esse Portugal fora.
Com uma escrita profunda, falando directamente ao coração do leitor, e cativando-o, a autora demonstra saber despertar em nós leitores toda uma panóplia de emoções, desde a ternura, simpatia, piedade, raiva, num verdadeiro turbilhão emocional que nos vai arrastando ao longo do processo viciante de leitura, já que torna-se imperativo saber mais e mais sobre a vida das personagens, à medida que nos vai sendo desvendado o seu passado, ficamos ansiosos para saber o seu futuro.

Célia Loureiro escreve com uma maturidade que, há muito, não descobríamos em alguém tão jovem (a autora tem apenas 22 anos).

Com “Demência” travamos conhecimento com um leque de personagens fortes, bem construídas, com uma carga psicológica bem marcada e delimitada.

Numa brilhante articulação entre passado e presente (a autora recorreu a analepses para, ao longo da narrativa principal, ir dando a conhecer o passado das principais personagens femininas e masculinas) vai sendo sabiamente traçado um paralelismo entre as duas principais figuras femininas – Olímpia e Letícia – respectivamente sogra e nora, e se estas começam por nos parecer muito dispares entre si, acabamos por descobrir que, no percurso de vida destas mulheres, há algo mais em comum do que uma tragédia que para sempre as marcou.

Letícia é chamada por uma vizinha para tomar conta da sogra Olímpia, a qual revela sinais evidentes de senilidade (esquecendo-se de actividades quotidianas rotineiras, como tratar dos seus animais), trazendo consigo as duas filhas (e netas de Olímpia) a madura Luz e a doce Maria, duas crianças que terão de aprender a suportar o peso da história menos feliz da sua família nuclear. As principais personagens masculinas – Sebastião e Gabriel – homens de duas gerações distintas, acabam por ir em socorro de Olímpia e Letícia, e simbolizam a dedicação, a lealdade e o amor, nos seus estados mais puros.

Nitidamente “Demência” arrasta-nos para uma aturada reflexão para temas candentes do nosso quotidiano, e para problemas sociais como: o envelhecimento populacional e as necessidades de amparo da população mais idosa, a degradação física e psíquica gradual associadas a doenças como a Alzheimer; a violência doméstica, as dificuldades e o isolamento a que vivem votadas as populações em tantas aldeias do interior do País, e os riscos de exclusão social e julgamento público, para quem, por circunstâncias da vida, não adopte aquele que seja considerado o padrão comportamental adequado à condição feminina, considerando-se uma visão a antiquada e mesmo “machista” tão evidente ainda hoje em zonas rurais, e curiosamente, seguida por homens e inquestionada por mulheres.




Com uma escrita viva, fluente e cativante, Célia Loureiro transporta-nos para o convívio com estas personagens e as respectivas problemáticas, e arriscaríamos mesmo a dizer que o título da obra vai mais além do problema base que despoleta toda a narrativa – a senilidade de Olímpia Vieira que a leva a ficar gradualmente dependente de terceiros ( e de quem menos esperaria, como a sua nora Letícia), arriscamos a dizer que “Demência” pode ser uma metáfora para tudo o que ainda é preciso amadurecer e evoluir em termos sociais e humanos no pais profundo, tanto mais premente, quando se vivem tempos complicados a todos os níveis da vivência humana.

Uma palavra final para os leitores, será interessante atentarmos na descrição realista da vida numa aldeia portuguesa, quem viva numa zona rural, reconhecerá vários aspectos, e quem for citadino, encontra aqui uma boa oportunidade para ver as diferenças entre as zonas rurais e citadinas, com tudo o que de positivo e menos positivo tal pode acarretar.

Trata-se de uma obra cuja leitura recomendamos vivamente e que nos faz aguardar pelo próximo livro de Célia Loureiro. Nota máxima, sem dúvida.

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